Estatuto dos profissionais da área da cultura: Governo ainda vai a tempo de corrigir erros graves da sua proposta para proteção social de trabalhadores/as independentes da cultura
A 8 de abril de 2021, ao fim de quatro meses de espera, o governo apresentou às associações e grupos do setor cultural propostas concretas sobre novas regras e prestações para a proteção social dos profissionais da área da cultura a integrarem o novo estatuto.
Apesar de ainda não nos ter sido dada a conhecer a proposta completa, consideramos que devemos pronunciar-nos sobre o que está já em cima da mesa.
1. Para quem trabalha por conta de outrem (incluindo todos os tipos de contratos de trabalho) é relevante a redução do prazo de garantia para acesso à proteção no desemprego, que saudamos. No entanto, o governo recuou face à proposta que já tinha apresentado anteriormente e com a qual tínhamos concordado - apresentando agora 180 dias de trabalho nos últimos 18 meses, quando já tinha anunciado 180 dias nos últimos 24 meses. Esta nova posição garante menos proteção e não foi justificada pelo governo. Por sua vez, o prazo de concessão do subsídio ainda não nos foi dado a conhecer.
Em todo o caso, reforçamos, uma vez mais, que será um erro o governo vir a desperdiçar esta oportunidade e os contributos das estruturas do setor, e terminar este processo sem desenvolver propostas robustas para o combate aos falsos recibos verdes e outras formas de precariedade.
Reconhecidas as más práticas laborais e as consequentes debilidades na proteção social, deveria estar a ser dada prioridade ao desenho de medidas capazes de interferir na raiz do problema. Que mecanismos prevê o governo criar para que, enfim, se realizem contratos de trabalho e como irá impedir a continuação da prática generalizada da utilização dos falsos recibos verdes, quer em entidades públicas quer privadas?
2. A proposta que o Governo apresenta para a proteção social de quem trabalha por conta própria desiludiu-nos e não prevemos qualquer adesão e eficácia.
Estamos conscientes de que o aumento da proteção requer um aumento da contribuição, contudo a proposta apresentada é altamente desproporcional e impraticável.
O governo propõe que a base de incidência contributiva passe a ser 100% do valor de cada recibo, quando atualmente é, no máximo, 70% do rendimento médio do último trimestre. Não compreendemos porque razão o Governo considera que não se devem aplicar as mesmas regras na aferição do rendimento relevante de quem trabalha de forma independente na cultura.
Isto conjuga-se com o agravamento da taxa contributiva. O governo propõe que a taxa paga por trabalhadores/as independentes passe de 21,4% para 25,2%. A nova taxa, conjugada com uma base de incidência de 100% gera um grande aumento do valor a pagar à segurança social. Por exemplo, para um rendimento de 1000€, a contribuição do/a trabalhador/a pode passar de cerca de 150€ para [21,5% (taxa atual) x 70% de 1000€ (base de incidência atual)] ou cerca de 112€ [uma vez que atualmente é possível ajustar voluntariamente a base de incidência] para 252€ (25,2% x 1000€). O governo propõe ainda uma taxa a pagar por parte das entidades contratantes da prestação de serviços de 5,1%, também sobre 100% do valor dos recibos.
Este aumento dos valores pagos à Segurança Social passaria a dar acesso ao subsídio de cessação de atividade e ao subsídio de suspensão de atividade (novo).
Quanto ao primeiro, a proposta é que todas as pessoas que trabalham de forma independente na cultura, ainda que não cumpram o critério da dependência económica atualmente exigido, tenham acesso a este subsídio já existente e semelhante ao subsídio de desemprego. Este terá um prazo de garantia de 360 dias em 24 meses. Este prazo, como temos dito desde o início deste processo, impede o acesso à proteção social a muitas pessoas cuja natureza do trabalho é de projeto a projeto.
O segundo, tem um prazo de garantia mais curto (180 dias nos últimos 18 meses) mas requer, para acesso, um período de paragem absoluta de atividade por 3 meses sem se auferir qualquer rendimento. No nosso entender é descabido propor que só seja possível aceder a uma prestação social ao fim de 3 meses sem trabalho, precisamente quando o objetivo é proteger as situações de intermitência de rendimentos. Não prevemos qualquer aplicabilidade deste subsídio, portanto, esta regra terá de ser eliminada.
3. Para aferir o número de dias de trabalho de um/a trabalhador/a independente para a contagem dos prazos de garantia no acesso aos subsídios, o governo propõe uma conversão do valor dos cachês em dias de trabalho. A fórmula escolhida será determinante para finalmente permitir o acesso, ou não, à proteção social. A proposta de conversão apresentada pelo governo é, uma vez mais, desadequada à realidade. Por cada 36,57€ euros faturados contabiliza-se um dia de trabalho (um mês equivale a 1097€).
O Inquérito aos Profissionais Independentes das Artes e Cultura, realizado pelo Observatório Português das Atividades Culturais, encomendado pelo governo, revela que cerca de metade dos/as trabalhadores/as da Cultura aufere um rendimento mensal líquido abaixo dos 600 euros (valores antes da pandemia).
Assim, achamos fundamental que estes valores de referência sejam diminuídos, sob o risco de se passar a operar sob uma lógica completamente desfasada da realidade.
Continuamos com a disponibilidade de sempre para apresentar as nossas considerações e propostas. Lamentamos que o governo queira, desnecessariamente, apressar a construção e discussão da parte mais fundamental do Estatuto, que tanto demorou a surgir.
Consideramos que o governo ainda está a tempo de construir uma proposta que realmente possa contribuir para garantir a proteção social de quem trabalha na cultura, que seja justa, válida e que não venha a ficar apenas na gaveta.
Por isso, alertamos, desde já, que face a um regime impraticável, não funcionará uma retórica que se baseie na falta de disponibilidade do setor para aderir.
A construção deste Estatuto deve contribuir para uma mudança de paradigma nas relações laborais, nas carreiras contributivas e na proteção dos/as trabalhadores/as. Estamos conscientes que este é um compromisso que irá exigir mudanças na forma de trabalhar e de contratar. Por isso, não nos cansamos de sublinhar que estas mudanças se refletem também nos orçamentos das estruturas. É absolutamente necessário que, juntamente com este estatuto, venham da parte do governo condições para o pôr em prática nas estruturas que hoje compõem o frágil sistema de cofinanciamento público e que têm o papel de cumprir os desígnios da política cultural em todo o país. Estas condições passam, desde logo, por maior financiamento, mas também pelo acompanhamento e fiscalização do cumprimento do Estatuto e, evidentemente, o compromisso correspondente inscrito no Orçamento do Estado.
14 de abril de 2021
PLATEIA Associação de Profissionais das Artes Cénicas
APR – Associação Portuguesa de Realizadores
REDE - Associação de Estruturas para a Dança Contemporânea
APEAC – Associação Portuguesa de Empresários e Artistas de Circo
AAPV – Associação de Artistas Visuais em Portugal
ECARTE XXI - Educação, Cultura e Arte para o Século XXI,
AÇÃO COOPERATIVISTA de apoio a profissionais do setor da Cultura e das Artes